Tantas histórias e estórias, margeiam os rios brasileiros. Como a correnteza elas serpenteiam pelos
povoados, vilas de pescadores e cidades inundando o imaginário popular. Poucas delas
vão parar nos livros, séries de tv, ou
no cinena, como Eu, o Boto, filme de 1986 estrelado por Carlos Alberto
Ricchelli que conta uma lenda amazônica.
Aqui, nas barrancas do nosso Rio Tocantins, chegadas, ou não, de outras águas, há
inúmeras dessas (h) estórias que, infelizmente, estão ficando cada vez mais distantes
engolidas que são pelas águas das hidrelétricas, ou levadas para o túmulo por antigos pescadores e beradeiros.
Tive o prazer de conhecer, em 2004, em Itaguatins (TO) o
maranhense de Colinas Raimundo Gonçalves da Silva, mais conhecido
como Raimundo Feijão, na época
com mais 77 anos de idade e bastante
lúcido. Bastaram poucos minutos de
conversa para me apaixonar pelos relatos do então aposentado pescador e
garimpeiro de diamantes, que entre
outras jurou que um dia durante uma de suas pescarias topou a Boiuna, a serpente
gigante que mora no Tocantins, e que ficou detido pelo Exercito
Brasileiro na mata por 90 dias na época
da Guerrilha do Araguaia.
Quando ainda era repórter de O
Progresso cheguei a publicar um texto
sobre as histórias narradas pelo “Seu Raimundo Feijão”. A coluna de hoje é uma tentativa de resgate do que aqui foi escrito naquela
ocasião. A matéria falava do risco das lendas e mitos que margeiam o Tocantins
desaparecerem com os lagos das duas
hidrelétricas que naquele período
falava-se que seriam construídas e viriam a inundar, e fazer desaparecer cidades como Itaguatins e Filadelfia, no Estado do
Tocantins, e parte de Carolina, no Maranhão. Uma delas a de Estreito foi construída, e a outra,
a de Serra Quebrada, continua,
graças a Deus, apenas no projeto. Essa última, que geraria um lago de
400 quilômetros quadrado é que faria
varrer do mapa a cidade de Itaguatins, onde residia Raimundo Feijão.
Vamos á nossa viagem.
É em Itaguatins, cidade localizada à margem do Rio Tocantins em frente
ao município maranhense de Edison Lobão, que fica a Cachoeira de Santo Antônio. Na verdade um conjunto de pequenas quedas d`água
a perder de vista que no período de veraneio é bastante visitada por turistas de toda a
região e até de outros estados. É lá também que fica a Praia do Tio Claro, de
grande frequência. Em tempo de praia quem
visita Itaguatins a define como um presente de Deus para região. "O local
é mágico, é místico", define o poeta, cantor e compositor Zeca Tocantins,
que assim como seu irmão o ambientalista
Domingos Cezar herdou do pai, o pescador Cametá ( já falecido) a paixão pela
beleza, força e as histórias e estórias do Rio Tocantins. O rio está presente
de forma viva na obra de Zeca, considerado o maior poeta popular da Região
Tocantina.
A pequena Itaguatins, cidade com pouco mais de seis mil
habitantes, não é famosa apenas pelas belas praias e suas quedas d´água. Das
cidades que margeiam o Tocantins, pelo menos nesta região, é a que abriga maior
conjunto de estórias e lendas. Todas relacionadas ao rio e transmitida há
décadas, de pai para filho, mas nunca
registradas em jornais, revistas, folder ou qualquer material de divulgação.
Não é exagero: dos seis mil habitantes da cidade alguém tem sempre
"um causo" para contar. Moradores mais antigos temem que a inundação
de Itaguatins, cuja economia é calcada no turismo, (mal explorado), e na
agropecuária, faça desaparecer as belas estórias que ao longo dos anos tomam
conta do imaginário popular. Para muitos, como o aposentado Raimundo Gonçalves da Silva,
77, "a barragem" vai acabar levando para o fundo as lendas e estórias
do Rio Tocantins".
Maranhense de Colinas, Raimundo Feijão, como é mais conhecido, morava há
23 anos em Itaguatins, que fica a uma hora e meia de Imperatriz. Pescador e garimpeiro, Raimundo Feijão chegou
à cidade atraído pelo brilho dos diamantes. Isso mesmo, Itaguatins nas décadas
de 1940 e 1950 foi um grande garimpo de diamantes. A garimpagem só acabou com a
descoberta de um outro garimpo, em Xambiá (TO).
"De vez em quando eu pego
minha bateia e ainda consigo algumas pedrinhas", revelou o garimpeiro.
Raimundo Feijão dizia-se testemunha de
fatos misteriosos ocorridos naquela cidade que, segundo ele, "cristão
comum" não acredita. Esses casos, aos quais se refere o aposentado, são o
aparecimento de "visagens", como a população costuma definir os
fenômenos pouco explicáveis que aparecem na cidade. "Essas aparições são comuns em
áreas de garimpo", explica Feijão. Em questão de minutos o aposentado
relatou uma série de estórias que grande parte dos moradores do lugar tem como
verdade.
A Boiúna , a cobra preta gigante, com mais de 40 metros com
"barbas" de mandi (peixe típico da região), e chifre é uma delas.
Raimundo Feijão conta que há muitos anos, durante uma pescaria com um amigo, se
deparou com a serpente.
"A canoa bateu no corpo dela que estava
atravessada no meio do rio. Ela nos atacou e nós só escapamos porque surgiu um
grupo de botos. Com isso ela se distraiu e conseguimos chegar a uma ilhota
próximo do local do ataque. Não é visagem, a Boiúna existe mesmo",
garantiu o aposentado. Relatos sobre o aparecimento da "anaconda
tocantina" são comuns em todas as cidades e povoados localizados na orla
do Tocantins. No povoado Imbiral, no município de Imperatriz, também há muitas
estórias relativas ao aparecimento dessa serpente. "Cresci ouvindo os
pecadores contando as estórias do aparecimento da Boiúna e do Nego
D`Água", diz o operador de VT Washington Wagner,27, que antes de se fixar
em Imperatriz morou num povoado próximo a Itaguatins. Quando criança, ele garante
ter visto o Nego D`Água. "Ele não aparece somente em Itaguatins. Em todas
essas cidades localizadas na beira rio ele já foi visto".
Diz a lenda que o Nego D`Água ou Cabeça de Cuia era um garoto mau que
certa vez espancou a própria mãe que revoltada lhe "rogou uma praga":
iria se transformar numa figura tão feia, da terra e da água, que quem o visse
sairia correndo com medo.
"Eu vi o Cabeça de Cuia diversas vezes", me contava em 2004 o garimpeiro Raimundo Feijão ressaltando que a
entidade aparece quase sempre à noite e geralmente fica de cócoras no lajeiro
(conjunto de rochas nas margens ou no meio do rio) para assustar as lavadeiras
e os pescadores" As aparições do Nego D`Água são rápidas. Ele sempre
termina pulando dentro do rio e desaparecendo da mesma forma como apareceu: em
segundos.
"Minha avó contava que certa vez ao chegar à beira do rio para
lavar roupas viu uma mulher de cabelos negros, e cumpridos, corpo bonito e pele
dourada, sentada e batendo os cabelos no lajeiro. Ao chegar mais próximo levou
um susto ao olhar para o rosto da desconhecida e perceber que ela não era deste
mundo. Saiu correndo enquanto a mulher mergulhava e desaparecia na águas do
Tocantins. Minha avó dizia que era a Mãe D`Água", conta o radialista VIDAL
MORENO, naquele tempo narrador esportivo
da Rádio Mirante de Imperatriz e que depois virou prefeito da cidade.
Nascido e criado em Itaguatins,
o radialista ainda
conta que quando era menino costumava escutar as estórias de sua cidade. Confessa
que não chegou a testemunhar nenhum dos fatos contados por sua falecida avó, mas na hora de responder se teria coragem de
passar a noite na beira do rio em frente á cachoeira de Santo Antônio, é
incisivo: "não!" .
"Eu nunca vi o Nego D`água ou a Boiúna , mas já ouvir as caixeiras
da pedra do Divino", garantiu o radialista.
A Pedra do Divino é outra estória intrigante de Itaguatins. Todos os
anos durante a festa do Divino a cidade fica estática para ouvir as batidas de
tambor vindo da Pedra do Divino, uma imensa rocha de difícil acesso localizada
no meio do rio. O local foi palco, na época do garimpo, de uma tragédia. O
barco que transportava um grupo para festa
naufragou. Ninguém sobreviveu. Desde então, no período da folia, ouve-se
ao longe o barulho produzido pelas caixeiras. Não se tem notícia de algum morador
da cidade que tenha tido, até hoje, coragem de ir á pedra conferir de perto o
fenômeno.
A Pedra também tem outras estórias. A dona-de-casa Leonice Lima Vidal,
conta outra: um pescador sonhou com um altar diamantes que existiria na
Pedra do Divino. No sonho o pescador recebeu a recomendação para que não
contasse a história para ninguém pois receberia uma recompensa. Entusiasmado
contou o sonho para todos os seus amigos. Três dias depois, Raimundo Quente,
como era chamado o homem do sonho, morreu misteriosamente. “Meses depois, a primeira pessoa para quem contou a história
morreu afogada” narrou ela.
Itaguatins, como as cidades que margeiam o Amazonas, também tem a sua história do boto
que vira gente e sai para namorar e se divertir. Diz a lenda que há muitos anos
uma “mulher da vida ” engravidou. Ao dar a luz, como não tinha como criar o
filho, o jogou dentro do rio. O fato
teria ocorrido na Pedra Grande, entre os municípios de Itaguatins e
Tocantinópolis.
O menino, chamado Honoratinho, não morreu. "Ele encantou (tornou-se
uma visagem)", explicou o garimpeiro Raimundo Feijão. Segundo ele o Honoratinho cresceu. É um rapaz bonito,
alto branco que sempre que vem á terra "tira sua casca de boto e fica por
algum tempo entre os humanos depois volta para o rio".
Até sobre a famosa Guerrilha do
Araguaia, o hoje falecido Raimundo Feijão
fez menção naquela conversa de 2004
no finalzinho da tarde, sentado na porta da casa dele. Contou-me o
saudoso colinense que em 1972, no local chamado "remanso dos botos" próximo à Serra
da Juriti, no Rio Araguaia. Ele e um grupo de amigos estavam assando uma
Jaraqui (peixe comum no Araguaia) quando foram surpreendidos por dezenas de
homens do Exército. Ele lembra que um dos comandantes da tropa era o hoje
coronel reformado do Exército Sebastião Curió. Por cerca de 90 dias Raimundo
Feijão conta que ele e seus amigos foram impedidos pelos militares de retornarem
para casa ou dar qualquer noticia aos
familiares. Os militares não queriam que os pescadores falassem da presença
deles.
"Não fomos maltratados. Durante todo tempo que permanecemos com
eles nós ficamos pescando e cozinhando", contou.
Esse episódio relatado por Raimundo Feijão é uma pequena referência da
atuação do Exército durante Guerrilha do Araguaia. Uma página negra da história
do Brasil ainda pouco explorada. Os militares estavam na região à procura dos
"guerrilheiros", na verdade , estudantes universitários de orientação
socialista, maioria do sul e sudeste do país, que durante os chamados anos de
chumbo se juntaram para tentar derrubar o governo militar. Sonhavam com um país
melhor para se viver. Os "guerrilheiros" tentaram promover uma
revolução camponesa a partir desse lado do país, mas acabaram, depois de
caçados nas matas do Estado de Goiás (hoje Tocantins) e Pará, mortos. Poucos
conseguiram sobreviver para contar a história. Municípios como Itaguatins,
Sampaio, Imperatriz, Praia Norte, Araguatins Xambioá, encerram muitos capítulos
da época da guerrilha.
O radialista Vida Moreno, conta que era comum, em Itaguatins, quando
saia para caçar passarinhos, encontrar pequenos abrigos encravados dentro do
mato apenas com o básico para uma ou duas pessoas sobreviver. Também era rotina
o desaparecimento de panelas e mais panelas de comida nos quintais. Presume-se
que quem furtava a comida eram os "guerrilheiros" para não morrerem
fome.
Voltando a Itaguatins, pelo menos duas pessoas foram presas lá pelos homens
do Exercito . Uma voltou da "viagem", da outra não se
teve mais noticia. O que conseguiu voltar de acordo com os relatos de Raimundo
Feijão, à época era vereador e se
chamava Chico Araújo. O outro, o mineiro identificado pelo apelido de Paninana
"sumiu do mapa", mas em
Itaguatins os moradores mais antigos ainda lembram dele.