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JORNALISTA E PROFESSOR DOUTOR DO CURSO DE JORNALISMO DA UFMA/IMPERATRIZ
Eles foram sendo içados, um a um, dentro de um tubo-cápsula, aos olhos do mundo inteiro, olhos grudados na TV e na internet por longas horas. Cada mineiro que saía daquele cilindro era festejado pelos familiares, pelos representantes do governo (que estavam lá a postos, de todos os escalões), pelos telespectadores, em todos os cantos do planeta (mais de 1 bilhão de pessoas, segundo a própria imprensa, ficaram vidradas nas telas de tv), pelos técnicos responsáveis pela megaoperação de salvamento. Saíram das profundezas da terra para o estrelato midiático.
Foi um espetáculo da mídia esse resgate. Milhares de jornalistas, emissoras de tv de quase todos os países do mundo, correspondentes internacionais, primeira página dos mais respeitados jornais impressos e dos sites de notícia que mais dão ibope, nos cinco continentes, uma transmissão ao vivo por longuíssimas horas (o que para operacionalizar é caríssimo), dias e dias de cobertura total...Um dos acontecimentos mais cobertos deste novo século: mais coberto que a escolha de Bento XVI, que a vitória de Obama, que o terremoto no Haiti; talvez só comparado, em abrangência e impacto, ao atentado do 11 de setembro.
Todo mundo faturou com a tragédia dos 33 homens. O governo faturou alto, pois utilizou a megaexposição que o fato tomou para divulgar os valores do ‘ser chileno’, a marca da identidade do seu país: bandeiras tremulando, bandeiras empunhadas por parentes e pelos próprios mineiros, dentro e fora do buraco, hino nacional, discursos patrióticos e inflamados, a mostração da força e da resistência do povo chileno (‘o chileno é, antes de tudo, um forte’ poderia ser o slogan de toda essa tragédia).
A economia faturou, pois os hoteis ficaram lotados, os empregos de tradutores sumiram, os serviços de todos os tipos cresceram a procura, nunca se viu tanta gente interessada no deserto do Atacama. A mídia faturou, pois tratou de transformar uma fatalidade em uma narrativa agendada por mais de dois meses – e iria a mais, se não os tivessem retirado de lá. E os próprios mineiros vão faturar, ao fazer das suas desgraças pessoais mercadorias vendáveis na forma de produtos para o consumo de entretenimento das massas – filmes, documentários, livros, camisetas, entrevistas pagas etc etc etc. Bem administrada, uma tragédia não precisa ser tão ruim assim...
Mas eu fiquei me perguntando, vendo aqueles homens saírem, um a um, do buraco: por que será que o mundo tinha tanto interesse naquela história? E aí, algumas possíveis explicações vêm à baila. Primeiro, a solidariedade, que é própria do ser humano (é um ‘dispositivo genético’ que temos desde o Éden); afinal, mais que 33 pessoas, havia 33 vidas humanas naquele espaço, presas a centenas de metros abaixo da terra, na iminência de serem dizimadas por doenças, sufocamento, inanição ou qualquer outro mal de ordem física ou psicológica – homens que poderiam ser um de nós, dignos então de toda a nossa benemerência, mesmo que distante. Segundo, pela natureza mesma da curiosidade do ser humano. Santo Agostinho bem afirmou que o Homem possui uma ‘curiositas’, que é o desejo de apreciar coisas estrambóticas, boas ou más, desde que esdrúxulas – e o que pode ser mais esdrúxulo do que três dezenas de homens embaixo da terra, sem poderem sair, com a morte a rondá-los diuturnamente? Terceiro, pela força da mídia.
Não nos esqueçamos que as primeiras informações que tivemos dos mineiros vieram na forma de bilhetes e de...imagens do buraco, filmadas por um deles, que se transformaram, rapidamente, num impressionante acervo da tragédia, que se pulverizou por programas de TV, capas de jornais e revistas, sites, imagens de celulares.
A mídia, enxergando no acidente um ótimo material informativo (ou de espetacularização, ou as duas coisas juntas), tratou de dar-lhe a eminência apropriada – na teoria da comunicação, chama-se esta estratégia de ‘agendamento’: a tragédia dos mineiros foi ‘agendada’ por todos os veículos de mídia, o que a fez ganhar a dimensão que ganhou. E quatro: é da natureza humana a apreciação pelas narrativas.
Desde tempos mitológicos, o homem é fascinado pela contação de histórias, pelas ações que ocorrem no mundo, sejam elas reais ou imaginadas. O melhor exemplo disso é Sherazade, com as histórias das ‘mil e uma noites’. O episódio dos mineiros transformou-se numa grande narrativa, quase mitológica – 33 homens lutando contra as adversidades do mundo, representadas pelo buraco e tudo que ele englobava (fome, sede, calor, morte etc).
Um reallity show, na mais fidedigna acepção deste termo. E todos estavam se mordendo se curiosidade para ver como esta narrativa iria terminar. São as narrativas que dão sentido ao mundo, por isso nós as consumimos tanto. O jornalismo, como a narrativa por excelência do mundo referencial, apropriou-se da história do acidente e da de cada um dos homens envolvidos e, como Sherazade, foi contando-as numa sucessão quase infinita, até o seu desfecho.
O desfecho...Acabada a narrativa do episódio, feitas as contas e recolhidos os lucros, de parte a parte, tudo volta ao seu normal...Até que outras narrativas surjam, tão impactantes quanto à daqueles homens...ou até que, cada um deles, à sua maneira, resolva alongar aquela narrativa com outras e outras, ao mesmo tempo particulares e universais, para dar sentido à sua (e às nossas) vidas.