Vale a pena ler...
Neste espaço, em artigo anterior intitulado “Do pré-natal ao túmulo”, ressaltei um dos aspectos da incúria estatal com os mandados constitucionais, a saber, o aberrante descumprimento do seu dever de garantir a segurança daqueles valores e direitos existenciais, gerais e universais, indispensáveis ao pleno desenvolvimento dos brasileiros: a vida, a liberdade, a propriedade. Socorri-me, então, de um exemplo que, infelizmente, ratifica, de modo categórico, o desrespeito do Estado brasileiro aos seus compromissos fundamentais, sobretudo a aberrante negligência dispensada à segurança pública: consoante o Mapa da Violência publicado pelo Ministério da Justiça: de 1988 a 2008, foram assassinados, no Brasil, 522.092 pessoas, média de 47.462 pessoas por ano, 130 por dia, no período.
Nesta oportunidade, a partir do referido Mapa, observa-se que os órgãos públicos do sistema de persecução criminal, envolvidos na investigação, processo, julgamento e execução das sanções penais, mostram-se sobremaneira incompetentes em cumprir as suas funções constitucionais e legais. Veja-se, a propósito, que se todos aqueles assassinatos tivessem sido investigados, processados, punidos os homicidas e executadas as respectivas penas, teríamos, só por conta deles, no mínimo 522.092 condenados presos no sistema de execução penal, somente naquele período; o bastante para ocupar quase a totalidade das vagas prisionais disponíveis no país. E como se efetuaria o encarceramento dos praticantes de todos os outros graves crimes contra os direitos fundamentais dos brasileiros: a liberdade individual, a incolumidade pessoal, a saúde pública, a propriedade, vilipendiados por estupros, tráficos de drogas e armas, seqüestros, roubos, contrabandos, peculatos etc.?
Destarte, no âmbito do sistema de persecução penal, cabe ressaltar, neste ponto, a injustificável e, ao que parece, atávica ineficiência dos órgãos do Estado brasileiro encarregados da persecução criminal, precipuamente no que concerne ao dever de fazerem cumprir efetivamente as sanções penais, segundo ordena a Constituição Federal e a Lei de Execução Penal, mesmo relativamente aos pouquíssimos crimes que, rompendo, ainda que infimamente, a cifra negra da impunidade, conseguem trazer a lume.
O sistema de execução penal no Brasil acha-se, pois, entupido de previsões normativas etéreas, sem nenhuma efetividade, do tipo: todo réu tem direito à individualização da pena; é assegurada a incolumidade física e moral dos presos; a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado etc. Qualquer pessoa, com um mínimo de discernimento, compreenderia que tais direitos não passam de letra morta, capitulados naquela alegoria popular: “no Brasil, há leis que pegam e leis que não pegam”.
Enquanto isso, os prosélitos de discurso demagógico fácil, embora por vias oblíquas, costumam, uns, atacar esses e outros direitos dos encarcerados, buscando convencer os bestiais de plantão de que: “se está preso é culpado, logo não tem direito”, “tem que pagar mesmo”, “tem que sofrer”; enquanto outros eximem os criminosos de responsabilidade por suas decisões individuais de delinqüir, atribuindo todas as culpas à “sociedade capitalista”, “egoísta”, “injusta por natureza”. No entanto, é imprescindível repelir tais asneiras, sobretudo porque assegurar as condições constitucionais e legalmente adequadas de cumprimento das penas, especialmente a disponibilidade de vagas nos regimes prisionais, constitui dever do Estado e instrumento indispensável de efetivação da segurança pública.
Entretanto, a despeito de pertinentes a estruturação, organização e funcionamento efetivo, constitucional e legal do sistema de execução penal, visando garantir, a um só tempo, os direitos fundamentais dos condenados e dos homens de bem – agredidos diuturnamente por bandidos que deveriam estar presos, mas estão soltos –, a verdade insofismável: o Estado brasileiro, por intermédio do governo federal e dos governos estaduais, historicamente, desrespeita, de forma pública e notória, os mandamentos constitucionais e legais correspondentes à punição dos criminosos. Aproveitando-se de que os indivíduos e a sociedade não correlacionam agressões ao Estado Democrático de Direito com os crimes que cotidianamente lhes violentam, por exemplo, os quase 50 mil assassinatos anuais.
Existe solução? Antes de tudo, indivíduos, sociedade, e Estado devem fazer uma revolução no Brasil, mediante a concretização do Estado Democrático de Direito. Revolucionário, aqui, seria cumprir a lei.
Nessa ordem de idéias, pode concorrer sobremaneira para que os agentes públicos do governo federal e dos estados façam chegar o Estado Democrático de Direito no sistema de execução penal fazê-los alcançar e responder pessoalmente com base na Lei de Improbidade Administrativa (Lei federal nº 8.429/92). Eis, a meu ver, uma possibilidade concreta de atuação do Ministério Público brasileiro: investigar, acionar, processar e buscar a condenação desses agentes públicos por atos de improbidade administrativa, à medida que lesam diuturnamente as normas do sistema de execução penal, no mínimo, porquanto violam os valores e direitos fundamentais dos brasileiros e, especialmente, os princípios constitucionais da legalidade e da eficiência, como também infringem reiteradamente a Lei de Execução Penal.
Desse modo, uma atuação do Ministério Público, mais que possível, entremostra-se juridicamente necessária, adequada e razoável, à proporção que atuar exclusivamente em face dos entes estatais personalizados (União e Estados) vem-se constituindo perda de tempo e de recursos públicos, além de praticamente uma tautologia: declarar a responsabilidade legal dos entes estatais já legalmente responsáveis.
Em suma, nos termos da Carta Magna e das leis, prisões suficientes e adequadas para os criminosos são garantia dos direitos fundamentais do homem de bem.