Conjur
O inquérito aberto para investigar o presidente Michel Temer testará os
limites da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre escuta ambiental
clandestina. Os documentos, liberados pelo STF nesta sexta-feira (19/5),
mostram que o presidente da República foi gravado sem autorização da corte, a
quem compete autorizar investigações sobre autoridades.
Segundo a narração dos fatos feita pela
Procuradoria-Geral da República, o empresário Joesley Batista, dono do
frigorífico JBS, gravou por conta própria, em março deste ano, conversas com
Temer, com o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e com o deputado Rodrigo Rocha
Loures (PMDB-PR) para dar início às negociações de um acordo de delação premiada.
E só levou a informação à Procuradoria-Geral da República no mês seguinte.
“Se essa
gravação do presidente, feita num ambiente privado, for reputada lícita,
qualquer pessoa poderá grampear o Palácio do Planalto. Um funcionário não
poderia ser demitido por justa causa se fizesse isso”, alerta o criminalista Andrei
Zenkner Schmidt, professor de Processo Penal da PUC do Rio Grande do
Sul.
“A gravação foi feita em ambiente doméstico, privado. E não estamos
falando de uma privacidade qualquer, é a privacidade do presidente da
República. É um sigilo qualificado que envolve inclusive questões de segurança
nacional”, analisa o advogado.
Joesley Batista gravou Temer, Aécio e Rodrigo Rocha Loures por conta própria para negociar acordo de delação. Foto: Reprodução |
Conforme disseram advogados
consultados pela ConJur, o Supremo hoje entende ser possível a
gravação clandestina feita por um interlocutor se ela for usada para defesa
própria. Mas não permite a preparação de armadilhas para flagrar um dos
interlocutores cometendo um crime. Muito menos para forçar o cometimento de um
crime, como os criminalistas entendem que pode ter acontecido no caso da
gravação de Temer.
“Não vejo
problema na gravação em si. Como regra geral, gravar uma conversa sua é
perfeitamente lícito”, diz o advogado Pedro Estevam Serrano,
professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo. “Outra coisa é armar
uma situação para que o outro participante da conversa cometa um crime.”
Serrano chegou
a aventar que Temer tivesse cometido o crime de prevaricação, já que foram
relatados crimes na conversa e o presidente não os denunciou às autoridades.
“Mas foi uma arapuca. Ele [Joesley] criou uma situação incriminante”,
afirma. “Não foi uma conversa em que foram relatados crimes do passado. Joesley
ligou para Temer, marcou hora e criou uma situação absolutamente constrangedora
para o presidente. Forçou o cometimento de um crime por ele. Não se pode
induzir ao crime.”
Zenkner afirma ainda que, do ponto de vista jurisprudencial, não há
problema na gravação ambiental clandestina. Mas acredita que o debate tenha de
se afastar dessas questões e começar do zero. "Jamais o STF analisou
questão tão complexa, e isso recomenda que se evite, desde já, a retórica dos
precedentes. É um caso peculiar que merece ser enfrentado com premissas
distintas."
Num recurso com repercussão geral reconhecida julgado em novembro de
2009, o Supremo autorizou a gravação ambiental feita por um dos interlocutores.
Mas foi diferente da situação de Temer, diz Andrei Zenkner. O caso de 2009 era
o de um réu que bateu boca com o juiz de seu processo e foi acusado de
desacato. Ele havia gravado a audiência e usou o áudio para provar que não
houve desacato. Mas no caso, explica o criminalista, foi uma solenidade
pública, com presunção de publicidade.
Carta na manga
De acordo com o pedido de abertura de inquérito, Joesley foi até a PGR no dia 7
de abril deste ano com quatro arquivos de áudio. Um era a gravação de uma
conversa que teve com Temer na garagem do Palácio do Jaburu, onde o presidente
mora; dois eram conversas com Rocha Loures; e a última era uma ligação entre
ele a Aécio. As conversas aconteceram em março.
Em todos os casos, as conversas foram iniciadas por Joesley. E todos os
arquivos foram entregues à PGR como provas do cometimento de crimes por
autoridades com prerrogativa de foro no Supremo. A expectativa do empresário
era se livrar dos processos que correm contra ele na Justiça Federal assinando
um acordo de delação premiada.
Na conversa com Temer, Joesley
conta que paga mesada para um procurador da República mantê-lo informado e diz
que nutre boas relações com o ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) “todo mês”. O
presidente fala pouco, apenas reage ao que Joesley fala e em dado momento diz
“ótimo” depois de saber o que o empresário está fazendo para “dar conta” de seus
processos.
Joesley é acusado de corrupção ativa e lavagem de dinheiro em inquéritos
que investigam fraudes em contratos da Petrobras e de fundos de pensão de
funcionários de estatais. Ele também é investigado por corrupção em contratos
do BNDES.
Com a assinatura
do acordo, já homologado pelo
ministro Luiz Edson Fachin, a PGR se abstém de oferecer qualquer denúncia
contra o empresário e nem se opõe a que ele more fora do Brasil. Em troca, ele
deverá pagar multa de R$ 110 milhões. Ao todo, a JBS pagará R$ 225 milhões com
o acordo.
Essa é outra diferença com a jurisprudência do Supremo, diz Andrei
Zenkner. No caso de 2009, o STF deixou claro que a gravação por um dos interlocutores
foi autorizada diante do estado de necessidade de um réu que, para se defender,
precisou invadir a privacidade de alguém. “Não vejo estado de necessidade nem
situação de perigo a amparar alguém que, para escapar de prisão resultante de
obra sua, tente garantir um acordo de colaboração”, explica o
criminalista.
Benefício com a
própria torpeza
Não se pode extrair benefício da própria torpeza", diz Lenio Streck. |
“Há um
princípio do Direito norte-americano que diz que você não pode se beneficiar da
sua própria torpeza. E esse cara se beneficiou”, exclama o jurista Lenio
Streck, constitucionalista e professor de Processo Penal da UniSinos. “É o
caso do neto que mata o avô para ficar com a herança. No caso americano, a
Suprema Corte, em 1895, entendeu que, embora não houvesse lei que proibisse o
neto de ficar com o dinheiro, havia o princípio do não benefício com a própria
torpeza.”
Lenio se refere
às movimentações de Joesley no mercado
financeiro e as consequências do vazamento de sua delação ao
jornal O Globo. Segundo o mesmo jornal, a JBS e o Grupo J&F,
dono do frigorífico, fizeram uma grande operação de compra de dólares e de
venda de ações no dia 17 de maio, horas antes de a delação ser divulgada.
A Comissão de Valores Mobiliários, agência reguladora do mercado de
capitais, informou nesta sexta-feira (19/5) a abertura de cinco processos
administrativos para investigar as movimentações das duas empresas na bolsa.
De acordo com
reportagem do Valor Econômico, somente a operação financeira com o
dólar pode ter resultado em ganhos de mais de US$ 1 bilhão. Houve valorização
de 8,06% no preço do dólar em relação ao real na quinta-feira (18/5).
Ainda na
quinta, a BM&F Bovespa, a bolsa de valores de São Paulo, recorreu ao
chamado circuit breaker, quando as atividades são suspensas por
causa de rápida maxidesvalorização. Segundo levantamento da consultoria
Economatica, a BM&F Bovespa perdeu R$ 219 bilhões em valor de mercado na
quinta.
“No Brasil, o neto ficou com a herança!”, resume Lenio Streck.
Clique aqui para ler o pedido de abertura de
inquérito contra Temer, Aécio e Rocha Loures.
Clique aqui para ler o acordo
de delação premiada de Joesley Batista e ler as transcrições dos depoimentos.